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Filipe Jacinto Nyusi, antigo presidente da República de Moçambique. |
Em um relatório que expõe graves irregularidades financeiras no coração da economia moçambicana, o
Tribunal Administrativo (TA) confirmou o "
desvio" de cerca de
33,65 milhões de dólares americanos (equivalente a mais de 2,1 mil milhões de meticais) das receitas provenientes da exploração de gás natural na Bacia do Rovuma. O caso, detalhado no Relatório e Parecer sobre a
Conta Geral do Estado (CGE) de 2023, aponta para falhas sistêmicas no governo de Filipe Nyusi, que encerrou seu segundo e último mandato em janeiro deste ano, deixando um rastro de controvérsias na gestão do
Fundo Soberano de Moçambique.
O documento do TA, debatido na Assembleia da República em março passado, revela que a Conta Transitória, subconta da Conta Única do Tesouro destinada a abrigar temporariamente as receitas do gás antes de sua divisão entre o Orçamento do Estado (60%) e o Fundo Soberano (40%), registrou um saldo de apenas 60,59 milhões de dólares até março de 2024. Desses, 47,58 milhões foram depositados em 2023 e 13 milhões no primeiro trimestre de 2024. No entanto, o governo declarou ter arrecadado 94,2 milhões de dólares entre 2022 e março de 2024, gerando uma discrepância de exatos 33,65 milhões de dólares não rastreados.
Especialistas e auditores do TA classificam o episódio como uma "grave confissão de irregularidade institucional", com indícios de que os fundos foram utilizados indevidamente nos Planos Económicos e Sociais (PES) de 2022, 2023 e 2024, sem passar pela Conta Transitória, sediada no Banco de Moçambique. "Isso representa uma violação consciente das normas de gestão financeira pública", afirma o relatório, que também denuncia a omissão de registros de receitas do gás na CGE de 2023 e o uso de contas bancárias fora do controle direto do Tesouro Público.
O escândalo ganha contornos ainda mais graves ao envolver o ex-presidente Filipe Nyusi diretamente em sua gestão executiva. Durante os dois anos de vigência da Lei n.º 1/2024, que criou o Fundo Soberano em janeiro de 2024, o governo de Nyusi é acusado de apresentar "deliberadamente informações enganosas" à CGE. Auditorias apontam para o abuso de "bilhetes e títulos do Tesouro" como mecanismo para "zerar" reservas do Banco de Moçambique, ultrapassando limites de endividamento interno e externo e derivando o país a uma crise de liquidez financeira.
"Durante dois anos, o Executivo apresentou deliberadamente informações enganosas na CGE", sublinha o TA, citando a falta de depósito de receitas como o Imposto de Produção Mineira (IPM), Petróleo-Lucro e Bónus de Produção. Em 2022, 800 mil dólares cobrados não foram transferidos; em 2023, de 73,4 milhões declarados, apenas 47,6 milhões chegaram à conta, resultando em um desvio imediato de 25,8 milhões. No primeiro trimestre de 2024, a diferença foi de 7,1 milhões. A Ministra das Finanças, Carla Louveira, que atuou como vice-ministra na era Nyusi, defendeu no Parlamento que os valores foram "executados diretamente nos PES", mas o TA refuta, exigindo auditoria individual do Fundo Soberano e responsabilização por exceder limites de endividamento.
Filipe Nyusi, cujo mandato foi marcado por promessas de transparência nas receitas extractivas, viu seu governo ultrapassar "todos os limites de endividamento interno e externo", segundo o relatório. Uma parte considerável das falhas persiste no sistema, com o TA recomendando a regularização dos montantes e a aplicação de sanções. O caso ecoa o histórico de escândalos financeiros em Moçambique, como as "dívidas ocultas" de 2016, que custaram bilhões e empurraram milhões para a pobreza absoluta.
Enquanto o Fundo Soberano, criado para salvaguardar gerações futuras das receitas do gás, permanece inoperante, o desvio de 33,6 milhões expõe as fissuras no sistema. Para Filipe Nyusi, que deixou o poder há nove meses, o relatório do TA é um lembrete amargo: o "desvio" não é só financeiro, mas de confiança pública. Investigadores independentes cobram extratos bancários do Banco de Moçambique para esclarecer o paradeiro dos fundos, enquanto a sociedade civil clama por justiça.