O Tribunal Judicial da Província de Maputo condenou, na última semana, o agente do Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC), Helton Rafael, a 20 anos de prisão pelo homicídio qualificado da sua ex-namorada, Anita Maúngue, de 26 anos. O crime ocorreu a 9 de março de 2024, no distrito de Magude, província de Maputo. Para além da pena de reclusão, o tribunal fixou uma indemnização no valor de 175 mil meticais a ser paga à família da vítima.
O desfecho do julgamento é visto por muitos como um raro avanço no combate à impunidade, especialmente em casos que envolvem agentes das forças de segurança. No entanto, o processo judicial esteve envolto em controvérsias, atrasos sistemáticos, tentativas de obstrução da justiça e até uma fuga espetacular do réu da prisão, num caso que evidencia profundas fragilidades do sistema penal moçambicano.
Anita Maúngue foi assassinada com extrema violência. Segundo testemunhos colhidos durante a investigação, a jovem teria rompido recentemente com Helton Rafael, situação que gerou conflitos recorrentes. Na noite do crime, Rafael teria atraído a vítima com a promessa de diálogo, levando-a para uma zona isolada, onde a agrediu até à morte.
O agente foi detido preventivamente, mas em 25 de dezembro de 2024 protagonizou um dos episódios mais graves da história penal moçambicana: a fuga em massa da Cadeia Central de Maputo, que resultou na evasão de 1.534 reclusos. Fontes do Centro para Democracia e Desenvolvimento (CDD) relataram que o agente do SERNIC teria se beneficiado de redes internas de cumplicidade para escapar, levantando sérias suspeitas sobre o envolvimento de funcionários prisionais e elementos ligados às forças de defesa e segurança.
Apesar da fuga, Helton Rafael foi recapturado semanas depois e reconduzido à prisão. O processo, no entanto, sofreu sucessivos adiamentos, inclusive pela ausência de testemunhas-chave, entre elas colegas do próprio SERNIC convocados para depor, que reiteradamente não compareceram às audiências.
Em março de 2025, o tribunal determinou a exumação do corpo da vítima, como forma de reforçar a base probatória do processo. A decisão gerou debates éticos e protestos por parte de familiares de Anita, mas os exames forenses acabaram por se revelar fundamentais para a reconstituição dos factos e consolidação do nexo de causalidade entre as lesões encontradas e a atuação violenta do réu.
No julgamento, que finalmente arrancou a 8 de abril de 2025, foram apresentados laudos técnicos que confirmaram a causa da morte como sendo um trauma craniano provocado por múltiplos golpes com objeto contundente. As análises coincidiram com os relatos de testemunhas oculares e as evidências recolhidas no local do crime.
A defesa tentou alegar ausência de intenção dolosa, mas o tribunal considerou a conduta do agente como fria, premeditada e motivada por ciúmes. “Trata-se de um crime de género, praticado por alguém com conhecimento técnico e funcional do aparelho criminal do Estado. É particularmente grave”, declarou a juíza relatora na leitura da sentença.
Para além do seu caráter trágico, o caso de Anita Maúngue tornou-se emblemático por expor debilidades estruturais da justiça criminal em Moçambique. Diversos analistas apontam falhas graves ao longo do processo, incluindo:
- Demoras processuais injustificadas;
- Falta de cooperação institucional entre o SERNIC e o tribunal;
- Insegurança nos estabelecimentos penitenciários, evidenciada pela fuga em massa;
- Fragilidade na proteção de vítimas e suas famílias.
Em declarações ao Centro para Democracia e Desenvolvimento, a ativista feminista Sónia Cossa criticou o que chamou de “cultura institucional de silêncio e protecionismo entre membros das forças de segurança”, que, segundo ela, contribui para a perpetuação de crimes de violência baseada no género.
“A condenação de Helton Rafael é um passo importante, mas não apaga o facto de que este crime podia ter sido evitado se houvesse maior vigilância institucional e celeridade no tratamento de queixas anteriores feitas pela vítima”, afirmou Cossa.
A credibilidade do SERNIC, já fragilizada por múltiplas denúncias de corrupção e práticas abusivas, sofre agora um novo abalo. Nos últimos anos, o órgão tem enfrentado sucessivos escândalos ligados a abusos de poder, desaparecimentos forçados, e agora, o envolvimento direto de um dos seus membros num homicídio brutal.
Em reação à condenação, o porta-voz do Ministério do Interior limitou-se a dizer que “o Estado respeita as decisões dos tribunais” e que “medidas internas estão a ser avaliadas”. Até o momento, não há indicação de abertura de um inquérito interno sobre como o agente conseguiu fugir durante a evasão da prisão ou sobre eventuais cumplicidades internas.
A família de Anita Maúngue, apesar da sentença, continua a exigir responsabilização mais ampla. “A justiça foi feita apenas em parte. Queremos saber quem ajudou na fuga, quem atrasou o processo, quem silenciou testemunhas. Esse crime tem cúmplices”, disse um familiar da jovem, à saída do tribunal.
O caso de Anita soma-se a uma longa lista de feminicídios em Moçambique que frequentemente ficam impunes ou são negligenciados pelas autoridades. Organizações da sociedade civil pedem a criação urgente de tribunais especializados em violência baseada no género e mais investimento na proteção de vítimas e testemunhas.
Redação: Índico Magazine ||
Fonte: CDD Moçambique|| Siga o canal 🌐 Índico Magazine 🗞️📰🇲🇿 no WhatsApp: https://whatsapp.com/channel/0029VafrN6E8aKvAYGh38O2p