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Venâncio Mondlane e Severino Ngoenha. Reprodução Índico Magazine |
O Filósofo e autor moçambicano Severino Ngoenha, uma das vozes mais influentes na intelectualidade do país, fez revelações impactantes sobre as origens do Diálogo Político em Moçambique durante uma intervenção recente. Em resposta ao Dr. Roberto Tibana, Ngoenha detalhou o processo de iniciação das conversas, destacando a ideia inicial de um diálogo técnico e inclusivo como sendo de autoria de Venâncio Mondlane, além dos termos de referência utilizados pela Comissão Técnica para o Diálogo Político (COTE). Suas declarações, proferidas em um contexto de críticas ao atual processo, enfatizam a perda de controlo inicial, a relutância de líderes políticos e a urgência de participação apesar das imperfeições, em meio a um cenário de violência e destruição que assolava o país.
Ngoenha, conhecido por sua análise crítica da política moçambicana e por obras que exploram temas como reconciliação nacional e paz, recordou que o processo começou em um momento de crise profunda. "Eu estava doente, fiz uma operação na próstata, estava no hospital, e eu só via no meu telefone o que ia acontecendo", explicou o professor, que se encontrava na Itália na época. Diante de "destruições enormes" e "mortes enormes, muita gente, média de dez, doze, catorze, quinze pessoas por dia", Ngoenha questionou: "O que é que eu faço eu? Não sou membro da FRELIMO, eu não tenho cartão da FRELIMO, eu não sou membro da RENAMO, não sou membro do MDM, também não sou membro do novo partido que nasceu". Rejeitando a opção de "ficar calado e comer pizzas e espaguetes", optou por uma "opção de fazer alguma coisa", batendo "portas para levar as pessoas a conversar, a encontrar um caminho através do diálogo e da palavra".
O filósofo destacou o papel pivotal de Venâncio Mondlane, líder da Aliança Nacional para Moçambique Livre e Autônomo (ANAMOLA), que recentemente tem boicotado auscultações sobre o diálogo inclusivo. "A ideia de um diálogo técnico e inclusivo foi de Venâncio Mondlane, os termos de referência que hoje são usados pela COTE também são dele", afirmou Ngoenha, revelando que seu "maior interlocutor nesse período foi o Venâncio Mondlane, e eu falava com o Venâncio uma ou duas horas por dia". Foi Mondlane quem redigiu um documento com "vinte e um pontos" sugerindo os principais temas para uma agenda de reforma no país, pontos esses que foram introduzidos no documento base do diálogo interpartidário. "Eu peguei nos vinte e um pontos, conseguimos introduzi-los no documento base que tinha que ser discutido, e assim começou o diálogo interpartidário. As ideias principais que nortearam o documento eram as ideias do Venâncio", enfatizou.
Ngoenha descreveu como convenceu o então presidente Filipe Nyusi a convidar as principais lideranças políticas, incluindo figuras como Graça Machel e Armando Guebuza, após "muita relutância". "Quando eu voltei, ainda nem estava curado completamente, convencemos o presidente Nyusi a convidar as principais lideranças políticas a sentar com elas", relatou. No entanto, o processo logo escapou ao controlo inicial. "Quando o documento circulou entre todos os partidos, e a pouco e pouco nós fomos perdendo o controlo dele. Quando ele foi pra comissão política, comissão central, começaram a fazer mudanças", lamentou. Uma das lutas chave foi evitar que se tornasse uma "iniciativa presidencial". "Eu falava muito com o Lutero Simão: 'Lutero, esta não é uma iniciativa presidencial, e não deve ser uma iniciativa presidencial. Vocês os partidos políticos devem ter a dianteira deste processo, não aceitem ir pra presidência, não aceitem que seja o presidente a dirigir, sentem-se com ele como iguais e discutam pra fazer propostas de uma maneira livre, autónoma'", argumentou Ngoenha.
As revelações prosseguem com cenários alternativos considerados durante o período de 15 de outubro a 23 de março, sob a presidência de Nyusi e com a leitura do acordo por Lúcia Ribeiro. "Nós fizemos cenários diferentes pra encontrarmos uma saída pacífica pro país: pensamos num governo de unidade nacional, pensamos num governo institucional, pensamos num governo técnico e sugerimos isto a uns e outros", disse. O objetivo era "fazer reformas profundas no país antes de pensarmos em futuras eleições, para que a gente possa se reencontrar numa base diferente". Hipóteses como Venâncio Mondlane como primeiro-ministro ou um modelo de chefe de governo à francesa foram discutidas, mas rejeitadas por resistências. "Chegou-se a hipotizar do Venâncio Mondlane como primeiro-ministro, isto fez caminho, houve gente que não aceitou", confessou.
Ngoenha criticou a transformação do processo em uma "proposta presidencial" do novo presidente, possivelmente referindo-se a Daniel Chapo, com os partidos "arrastados por trás". "Tudo isto foi sendo cozinhado, e de repente aquilo apareceu como uma proposta presidencial do novo presidente, com os partidos políticos a serem arrastados por trás", observou. Em conversas com membros de partidos, alertava: "Amigos, vocês não durmam, não pode ser assim, vocês têm que ter uma postura diferente pra este diálogo". Um ponto sensível foi a exclusão de Mondlane: "A razão da existência de um diálogo em Moçambique foram as manifestações e a cara mais representativa das exigências do povo, é o Venâncio, não faz absolutamente nenhum sentido que vocês façam esse diálogo sem a presença dele". Nyusi respondeu que era uma questão de lei, decidida pelo parlamento, mas Ngoenha agarrou a promessa de submissão em outubro.
Apesar das frustrações, Ngoenha defendeu a participação no atual processo, que não corresponde ao ideal inicial. "O processo que nós temos hoje não é o caminho ideal, não é o que devíamos ter, mas como disse uma vez antes, há ali possibilidades, com uma grande pressão, de lutarmos pra reformar o nosso estado, pra termos uma convivência comum um pouco mais pacífica e uma redistribuição social e económica um pouco mais equitativa", argumentou. Ele enfatizou o impacto na redução da violência: "De quinze de março até hoje, pelo menos uma, duas, três vidas salvámos. O número de mortes eram quinze ou vinte por dia, há mortes, há destruições, mas não tem para comparação com aquilo que aconteceu antes". Em um momento dramático, durante bloqueios nas estradas e repressão policial, Ngoenha e aliados tentaram mediar encontros entre Nyusi, Guebuza, Machel e outros para "parar com este tipo de conflitos". "Houve um tempo em que nós dizíamos assim, eu preciso de uma ou duas pessoas que possam convidar o presidente Chapo a sentar-se na mesa defronte ao presidente Guebuza, Graça Machel", revelou.
O filósofo admitiu erros e críticas internas ao grupo: "Uma reunião correu mal, e um dos membros diz: 'Porque é que nós entramos nesta coisa? Porque é que os nossos nomes vão sair nos jornais, vamos ser falados mal, a culpa é do sobrinho'". Mas justificou: "Se os professores servem alguma coisa, além de ser catedráticos e poderem dizer coisas sem ninguém fazer mal, se também a função deles é participar, nem que seja minimamente, a salvar uma vida, eu penso que teremos feito uma coisa extremamente importante para o país". Sobre controvérsias, como a negação de acordos pelo presidente em Lisboa e a contraposição de Mondlane, Ngoenha priorizou consensos: "O objetivo da política são os consensos, e foi em volta de busca de consensos que nós nos mobilizamos. Se eu dissesse o presidente Chapo mentiu, como é que eu ia convidar o presidente Chapo em seguida pra voltar a sentar-se na mesa connosco?".
Essas declarações ocorrem em um contexto atual de tensões no Diálogo Político Inclusivo, com a COTE sob críticas e Mondlane insistindo em inclusão apesar de boicotes recentes. Ngoenha concluiu com otimismo cauteloso: "Eu não me permito, não me autorizo de perder a esperança. Eu continuo a pensar o mesmo, só por favor, eu continuo a pensar que é extremamente importante nós buscarmos caminho". Sua intervenção reforça a necessidade de diálogo autêntico, ecoando análises recentes sobre a fragmentação política em Moçambique.